A homenagem ao Senhor do Bonfim é muito antiga na Bahia, embora haja controvérsias sobre sua origem portuguesa ou africana. Esta cerimônia acontece na segunda quinta - feira do ano em Salvador. Um imenso cortejo de devotos percorre dez quilômetros de Salvador, partindo do Largo da Conceição até o Largo do Bonfim. Baianas vestidas a caráter trazem moringas e potes cheios de água perfumada para a lavagem simbólica das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (MENDES, 2007).
Atualmente, cantos e hinos religiosos misturam-se ao som dos trios elétricos na festa, que é o maior exemplo do sincretismo religioso na Bahia, pois o ritual homenageia também Oxalá (Obatalá), que no candomblé é identificado como o Senhor do Bonfim. Os participantes bebem, comem e se divertem durante o percurso, antecipando o carnaval de rua de Salvador (MENDES, 2007).
A lavagem do Senhor do Bonfim é um momento de festejo religioso popular envolvendo várias camadas da sociedade baiana e de presença marcante de africanos e seus descendentes. Considerando “[...] que a relação com o sobrenatural e todas as crenças e cerimônias necessárias para que ela se estabeleça são formas de religião, podemos dizer que esta era um elemento central da festa [...]” (Souza, 2005, p. 45 apud MENDES, 2007).
A religiosidade é uma forma encontrada por homens e mulheres de construírem códigos, regras e leis que lhes possibilitem garantir a sobrevivência e a manutenção de seu grupo. A cultura tem dinâmica própria e acontecem de formas variadas de acordo com o grupo cultural, contexto histórico, político e social em que se vive (MUNANGA, 2006, apud MENDES, 2007).
A capela do Senhor do Bonfim começou a ser construída em 1745 e foi inaugurada no mesmo ano. Originalmente a igreja era lavada por escravos, permitido em um ato singelo da Igreja aos escravos. Aos poucos o ato da lavagem se popularizou e se transformou numa festa, mobilizando milhares de pessoas. O culto ao Senhor do Bonfim começa a assumir extraordinária importância em Salvador (MENDES, 2007).
Segundo Soares (apud MENDES,2007) a festa teria se originado do culto a Oxalá. Essa era uma cerimônia realizada às escondidas e fora da cidade, devido às perseguições por parte das autoridades. Com o retorno dos Voluntários da Pátria este ritual teria sido juntado ao da lavagem, por gratidão, por estes negros e mestiços, dando notoriedade, no espaço urbano, ao culto a Oxalá.
Para Mendes (2007), a tradição da lavagem teria assumido tais características devido à promessa de um soldado que lutou na Guerra do Paraguai. A autora considera que este tipo de promessa religiosa era comum na cultura luso-brasileira.
A festa do Senhor do Bonfim teve seu começo no mês de janeiro. Iniciava-se no segundo domingo depois do Dia dos Santos Reis. Na quinta-feira anterior ao início da novena acontecia a lavagem do santuário. Era organizada pela igreja e os escravos dos senhores da região faziam a lavagem da capela. A partir do século XIX, principalmente de meados do século, a festa assumiu características diferentes, tendo uma maior participação de negros que implantaram seus costumes.
Os negros pediam permissão para fazerem parte da festa do Senhor do Bonfim utilizando seus instrumentos e cantando em suas línguas maternas (VERGER, 1987, apud MENDES, 2007)).
Os nagôs, que no século XIX, formavam a maioria dos escravos baianos, celebravam em suas terras o culto ao Orixá criador, a quem atribuíam à condição de filho do Deus supremo e o status de Pai Soberano entre as outras divindades. (VERGER, 1987, apud MENDES, 2007)).
Prestavam-lhe um culto especial em colinas fazendo procissão com potes de águas para lavagem do lugar sagrado. O Senhor do Bonfim, orago da sagrada colina, de um templo onde se celebrava com escorrer de água um rito periódico, é Jesus Cristo, o filho de Deus, invocado como Pai Soberano de todos os Santos. (SERRA, 1995, apud MENDES, 2007)).
Desta forma, a cerimônia da lavagem do Bonfim trouxe à memória desses escravos nagôs da Bahia os ritos lustrais, praticados por seus antepassados, característicos do culto a Oxalá.
Mas essa memória não é vista aqui como um resgate de um determinado tipo de culto praticado em África. Ela tem uma função social. Ela ocorre no presente e é englobante e hierarquizante, pois nestas festas populares religiosas as comunidades estreitam seus laços e mantêm sua identidade de grupo, celebrando também sua vida cotidiana. É o momento em que esses africanos e afro-descendentes constroem uma identidade coletiva e se reconhecem enquanto comunidade solidária, mesmo que hierarquizada, pois as tensões e conflitos são camuflados (LUCENA, 2004, apud MENDES, 2007).
Esse culto vivo se dá na memória coletiva dessa parcela da população que participa do ritual da lavagem. A memória é um fator importante para se conhecer o passado, segundo Lowental (1998). Para ele, o importante na memória é sua natureza coletiva e o valor do conhecimento que traz. O passado relembrado é ao mesmo tempo individual e coletivo.
Para o conhecimento do passado são importantes os hábitos das pessoas e suas lembranças. As lembranças de uns confirmam e podem dar continuidade às de outros.
A lavagem das escadarias da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, que passou a ocorrer no final do século XIX, é uma festa popular e lugar de memória, identidade e comemoração. É um momento de oposição à vida ordinária e excludente da sociedade baiana. (MENDES, 2007).
Mas percebe-se que ao longo dos anos, toda essa tradição história foi perdendo a sua força. Hoje em dia são poucos devotos que ainda tem a tradição de subir até a Colina Sagrada para receber a benção do Senhor do Bonfim. O lado profano da festa ao longo dos anos, foi tirando o foco das pessoas, como acontece hoje em dia com a criação do Bonfim Light em 1998, explicado no tópico seguinte.
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